25.10.05

7. A estrutura arquitectónica das catedrais góticas: o exemplo de Amiens

__ Catedral de Amiens: uma das fachadas do transepto, com o respectivo portal encimado por janelas e rosácea; repare-se nos arcobotantes que lateralmente suportam o corpo do transepto.
__ Catedral de Amiens: pormenor de um arcobotante.
__ Catedral de Amiens: a rosácea do transepto vista do interior; note-se a abóbada de cruzaria de ogivas e os respectivos pilares de sustentação.
__ Catedral de Amiens: pormenor do interior, sendo bem visivel a função de descarga do peso da abóbada que os pilares desempenham.
__ Catedral de Amiens: o hemiciclo do coro com a arcada formada por arcos quebrados sucessivos, rematados no topo por uma abóbada de cruzaria de ogivas mais complexa e paredes em vidro.
__ Catedral de Amiens: vista do interior, com as arcadas formadas pelos arcos quebrados encimados pelo trifório e este pelas janelas clerestóricas; repare-se como o peso da abóbada descarrega nos pilares de sustentação.
__ Catedral de Amiens: perspectiva da nave central, delimitada pelas respectivas arcadas, e com a cabeceira ao fundo.
A estrutura arquitectónica da catedral gótica nasce do modelo inicial da Abadia de Saint Denis, aperfeiçoado com os progressos técnicos a partir daí verificados; também a rivalidade entre as cidades e respectivos bispos estimulou os arquitectos a elevar cada vez mais as naves das catedrais, tornando a verticalidade o seu aspecto mais característico. Os elementos essenciais da técnica construtiva do gótica são: arco quebrado - formado por dois segmentos de círculo que se intersectam e, por ter maior verticalidade, faz com o peso exercido seja menor que o do arco de volta perfeita do estilo românico; abóbada de cruzaria de ogivas - formada por dois arcos quebrados que se cruzam na diagonal e transmitem o impulso a quatro pontos, funcionando como um esqueleto de pedra que pode ser preenchido com materiais mais ligeiros, fazendo com que a abóbada gótica seja menos pesada que a românica e dando-lhe maior flexibilidade; o peso da abóbada é descarregado nas nervuras e conduzido aos pilares (no interior) e aos arcobotantes (no exterior); arcobotante - arco de descarga que transmite o peso da abóbada para o exterior, apoiado no contraforte ou botaréu, permitindo construir naves mais altas sem pôr em perigo a estabilidade do edifício. Tal como no românico, a catedral gótica adopta a planta de tipo basilical em cruz latina, com a cabeceira virada a este (para a cidade santa de Jerusalém) e o corpo principal dividido em 3 ou 5 naves. Em relação ao modelo anterior registam-se, contudo, transformações significativas. A nível interno: o transepto torna-se muito mais largo e pouco saliente, e a cabeceira mais complexa, ocupando cerca de 1/3 da área total da igreja; por detrás do altar-mor e do coro, o deambulatório prolonga-se até ao transepto, na continuidade das naves laterais; os pilares das arcadas aumentam em número mas são mais delgados e muito mais altos, acentuando a verticalidade do edifício, para o que contribuia também a proporção entre a altura e a largura da nave principal; as paredes laterias e as que se erguiam acima da arcada central obedecem a uma nova ordenação: inicialmente com quatro níveis de aberturas (arcadas, galerias, trifório e clerestório), passam a ter apenas três a partir do século XIII, com a supressão da galeria, permitindo o alongamento das arcadas e das janelas do clerestório, sublinhando as linhas verticais; as paredes são quase integralmente substituídas por vidro, e as rosáceas da fachada tornam-se imponentes e revestidas por coloridos vitrais. Estas alterações contribuiram para eliminar as barreiras físicas e visuais entre as diferentes partes do interior da igreja, definindo uma nova concepção do espaço, que se torna mais amplo, e evidenciando todo o esqueleto construtivo. A nível externo: as entradas da catedral tornam-se monumentais em todas as fachadas (a principal, de portal triplo, e as do transepto); os portais encontram-se talhados num corpo saliente da fachada, e ladeados por torres sineiras que imprimem maior verticalidade ao conjunto, podendo estar também adossadas ao transepto; as torres terminavam em telhados cónicos ou em flechas rendilhadas, e prolongavam-se em pináculos e agulhas que acentuam os elementos verticais da construção. Também no exterior se concentrava a abundante decoração escultórica, contrastando com a maior sobriedade do interior.
»»» Construída num tempo recorde para a época (entre 1220 e 1270), Nossa Senhora de Amiens é considerada uma das maiores catedrais de França, com 8000 m2 de superfície. Uma imensa nave, cuja abóbada se eleva a 42 metros, arcadas de 18 metros, janelas da altura de 12 metros, um coro de uma perfeição arquitectónica inegável, formada por 4 tramos e um hemiciclo de 7 panos, tornam-na na igreja gótica por excelência. Os três célebres portais da fachada oeste servem de mostruário de algumas das obras primas da estatuária gótica. Ao centro, o portal do Salvador, onde Cristo acolhe os visitantes; o tímpano, consagrado ao Juízo Final, é rodeado por 150 estátuas. De um e de outro lado, os portais da Mãe de Deus e de S. Firmino. Ao alto, a galeria dos reis da Judeia. A catedral é igualmente reputada pelo labirinto octogonal da nave, em preto e branco, que os fiéis percorriam de joelhos, em penitência; uma tira de cobre, no seu centro, indica a data do início dos trabalhos, os nomes do bispo fundador, do rei e dos mestres-de-obras. Dois túmulos episcopais em bronze, do começo do século XIII, são igualmente visíveis. Uma excelente visita virtual à catedral está disponível nesta página web: Amiens. «««
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Arquitectos ao serviço de Deus
"As catedrais são a manifestação extraordinária de um esforço de construção sem precedentes. (...) foram construídas por homens remunerados, apoiados na sua fé e encorajados pela população de que faziam parte e sob o impulso de uma rivalidade entre as cidades. Os meios que permitiram tais construções resultaram essencialmente de contribuições voluntárias, através de incentivos apoiados nas convicções religiosas, na crença dos doadores e na pressão da população. A pouca documentação disponível, em desenhos ou maquetas, levou a que, por vezes, se desenvolvesse a ideia de que o projecto de uma catedral tomava apenas forma no estaleiro. Mas é evidente que a importância e a complexidade de um tal edifício exigisse estudos preparatórios e desenhos rigorosos. (...) Os desenhos a partir dos quais se implantava o edifício, e a respectiva planta, obedeciam a esquemas geométricos que permitiam a sua reprodução, com precisão, à escala pretendida. (...) Como se passava do desenho do projecto à respectiva execução? Não era necessário saber ler para compreender e para reproduzir uma construção geométrica e, se o método do traçado era claro, podia ser aumentado a qualquer escala. Partindo do circulo, do triângulo equilátero, do quadrado, do pentagono, do que deles podia derivar e das suas combinações, todos os traçados eram possíveis. (...) A construção de grandes igrejas, à medida da evolução e dos progressos da técnica, exigiu profissionais cada vez mais qualificados. Dos séculos XI ao XIII, os monges, entre os quais alguns eram mestres-de-obras experientes, cedem pouco a pouco o lugar, mesmo prara a construção de igrejas monásticas, a verdadeiros arquitectos-engenheiros (...). Alguns foram chamados a construir em toda a Europa. A mão-de-obra incluía operários especializados que se deslocavam de estaleiro em estaleiro, dado estes serem frequentemente interrompidos devido a falta de financiamento, na sequência de acontecimentos políticos ou de epidemias."
Roland Bechmann, "Un architecte au service de Dieu", Historia Thematique, 74 (2001), pp. 15-22.

23.10.05

6. Saint Denis, o abade Suger e as origens da arte das catedrais: Deus é luz


__ Mosteiro de Saint Denis: pormenor do duplo deambulatório que rodeia o coro e o altar-mor da igreja, com o sistema de cobertura em abóbada de cruzaria de ogivas e os respectivos pilares de sustentação, sendo também visíveis as paredes rasgadas de janelas.
__ Mosteiro de Saint Denis: pormenor do altar-mor da igreja, rodeado pelo deambulatório e respectivas capelas radiantes.
__ Mosteiro de Saint Denis: vista geral da nave principal, com a respectiva cobertura em abóbada de cruzaria de ogivas, e separada das outras naves por uma sucessão de arcos quebrados; ao fundo a cabeceira e suas capelas radiantes, foco de onde irradia a luz sobre todo o espaço.
__ Mosteiro de Saint Denis: pormenor da cobertura da nave principal da igreja, em abóbada de cruzaria de ogivas, cujo peso é descarregado para os pilares laterais, e destes para os contrafortes e arcosbotantes do exterior; os alçados laterais são quase integralmente constituídos por paredes de vidro, decoradas com vitrais.
__ Mosteiro de Saint Denis: a grande rosácea da fachada principal vista do interior da igreja.
Em 1144 realiza-se a cerimónia religiosa de consagração da nova igreja da Abadia de Saint Denis, perto de Paris, com a presença do rei Luís VII, de muitos nobres e de todos os bispos. Tratava-se do mosteiro mais importante por ser a necrópole régia, lugar de sepultura dos monarcas franceses, além de guardar também o corpo e as relíquias de Saint Denis, o apóstolo evangelizador da França e o santo protector do reino. Foi por isso que o seu abade, Suger (1081-1151), promoveu a remodelação arquitectónica da igreja, para que a qualidade do seu edifício correspondesse ao prestígio de um mosteiro que era, ainda, o principal centro de peregrinação de toda a França. Em comparação com o modelo românico, a estrutura que resultou das obras efectuadas entre 1137 e 1144, é bastante diferente. A fachada passa a ser flanqueada por duas torres e provida de três amplos portais; por detrás, o nártex possui dois tramos e três naves no nível térreo, e três capelas por cima destas, sendo ambos os pisos cobertos por abóbadas de cruzaria de ogivas. O cruzeiro, na intercepção da nave principal com o transepto, muito mais amplo e o centro luminoso da igreja, recebeu os relicários ornados de ouro e pedras preciosas, para estarem visíveis aos olhos de todos. A cabeceira passa a ter duplo deambulatório, de onde saíam as capelas radiantes, separados apenas por finos pilares que deixavam passar a luz, fundindo-se assim num só; a cobertura era constituída por uma abóbada de cruzaria de ogivas; todo o peso da construção é agora projectado para o exterior e aí suportado por contrafortes, usando-se mais tarde os arcosbotantes, de modo que o interior não necessitava de tantos suportes e adquiriu maior amplitude espacial e verticalidade; por fim, libertas as paredes da sua função de suporte, as janelas foram ampliadas ao ponto de ocuparem quase toda a superfície parietal. As inovações técnicas geralmente associadas à arquitectura gótica (arco quebrado ou ogival, abóbada de cruzaria de ogivas, arcobotante) não são, na verdade, elementos totalmente novos, pois haviam já sido usados pontualmente nas construções românicas; novo é o facto de surgirem pela primeira vez combinados num mesmo edifício, para concretizarem um determinado objectivo teológico e estético. O que há aqui de absolutamente novo, e que as futuras catedrais vão reproduzir, é: 1) o uso da luz, ou seja, a necessidade de ampliar o interior da igreja e libertá-lo de obstáculos à passagem da luminosidade, remetendo sobretudo para o exterior as estruturas de suporte de toda a construção; o objectivo era inundar a igreja com luz, identificada com o espírito de Deus e a luz criadora do universo. 2) a nova relação entre função e forma, estrutura e aparência, ou seja, a importância dada à perfeita relação entre as diferentes partes da igreja, em termos de proporções: a harmonia, baseada na geometria, como fonte de toda a beleza; se a nova arquitectura resulta dos progressos técnicos e da engenharia, que tornaram possível a construção de abóbadas mais altas e mais eficientes os respectivos suportes, permitindo suprimir as grossas paredes do românico, tais progressos estiveram subordinados a considerações de forma (beleza, harmonia, equilibrio), em que todo o esqueleto arquitectónico tem uma dimensão estética; por essa razão há vários elementos que exprimem uma função que não cumprem, caso das colunas embebidas que parece transmitirem o peso das abóbadas ao pavimento da igreja, mas na realidade são apenas decorativas. Estes dois aspectos mais marcantes da arquitectura gótica resultaram da interpretação que Suger fez da obra teológica de Dinis o Aeropagita, o qual identificava Deus com a luz. A catedral (de cathedra, o trono onde se sentava o bispo), construída com base nesta ideia, é então concebida como a materialização do imaterial (a luz ou espírito divino), a concretização da realidade sobrenatural, o lugar de passagem para a eternidade, a casa de Deus. Por volta de 1150 a nova arte, então designada por opus modernum (obra moderna) e opus francigenum (obra francesa), é ainda limitada a Paris e sua região, mas um século depois estende-se já por toda a Europa, começando a declinar a partir de 1450. No século XVI, Giorgio Vasari (1511-1574), arquitecto e tratadista do Renascimento, fascinado pelos cânones da Antiguidade Clássica, popularizou o termo gótico para designar, em sentido negativo, a arquitectura das catedrais, relacionando-a, pejorativamente, com os Godos.
Os textos escritos pelo abade Suger, sobre as obras de remodelação que mandou efectuar na igreja da Abadia de Saint Denis, demonstram bem a importância da teologia da luz como conceito base para as suas propostas arquitectónicas; nestes dois excertos destaca-se a associação entre Deus e Luz, e a igreja como o espaço de materialização dessa luz, ou seja, da divindade:
"Uma vez unida a nova parte posterior à parte da frente, toda a igreja resplandecerá com a sua parte intermédia, a nave, iluminada. Pois luminoso é aquilo que luminosamente se liga ao luminoso. E luminoso é o nobre edifício que a nova luz penetra."
"Quem quer que sejas, se queres prestar homenagem a estas portas não admires o ouro, nem a despesa, mas o trabalho e a arte. A nobre obra brilha, mas brilha com nobreza: que ela ilumine os espíritos e os conduza para verdadeiras luzes, para a verdadeira luz de que Cristo é a verdadeira porta."
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Um novo modelo construtivo
"A característica decisiva do novo estilo não é a abóbada de cruzaria de ogivas, o arco quebrado ou o arcobotante. (...) Nem a crescente altitude é o aspecto mais característico da arquitectura gótica. (...) Há, no entanto, dois aspectos da arquitectura gótica que não têm precedente nem paralelo: o uso da luz e a relação única entre estrutura e aparência. Pelo uso da luz entendo mais especificamente a relação da luz com a substância material das paredes. Numa igreja românica a luz é algo distinto e contrastante com a pesada, sombria, táctil substância das paredes. A parede gótica parece ser poderosa: a luz é filtrada através dela, penetrando-a, fundindo-se com ela, transfigurando-a. (...) Os vitrais do gótico substituíram as paredes vivamente coloridas da arquitectura românica; estruturalmente e esteticamente, eles não são aberturas na parede para admitir luz, mas paredes transparentes. (...) Neste aspecto decisivo, o gótico pode ser, por conseguinte, descrito como uma arquitectura diáfana, transparente. (...) A nenhum sector do espaço interior era permitido permanecer na escuridão (...). As naves laterais, os trifórios, o deambulatório e as capelas do coro, tornaram-se mais estreitos e menos profundos, as suas paredes exteriores, perfuradas por fileiras contínuas de janelas. Finalmente, surgem como uma concha superficial e transparente rodeando a nave e capela-mor, enquanto as janelas, se vistas do exterior, deixam de ser distintas. Parecem fundir-se, vertical e horizontalmente, numa esfera contínua de luz, uma barreira luminosa por detrás de todas as formas tácteis do sistema arquitectónico. (...) A segunda característica surpreendente do estilo gótico é a nova relação entre função e forma, estrutura e aparência. (...) a ornamentação está inteiramente subordinada ao motivo produzido pelos elementos estruturais, as abóbadas de cruzaria de ogivas e fustes de suporte; o sistema estético é determinado por estes. (...) a estrutura adquire na arquitectura gótica uma dignidade estética que fora desconhecida em tempos mais remotos. A maravilhosa precisão com que, por exemplo, cada bloco individual era talhado e assente na abóbada gótica - não deixando juntas desajustadas que tivessem de ser dissimuladas - sugere não só perfeita técnica artesanal (...) mas também um novo gosto e apreço pelo sistema tectónico para o qual o românico, em geral, parece não ter tido olhos. A pintura mural gótica nunca oculta, antes salienta, o esqueleto arquitectónico. Até mesmo os vitrais se submetem em crescendo, na composição e no desenho, ao padrão da armadura de pedra e metal em que se acham encaixilhados."
Otto von Simon, A catedral gótica. Origens da arquitectura gótica e o conceito medieval de ordem, Lisboa, Editorial Presença, 1991, pp. 27-40.

13.10.05

5. O letrado Dante Alighieri: a cidade e a escrita


__ Pintura a fresco de Domenico de Michelino, 1465, catedral de Florença, representando dois dos aspectos mais importantes da vida de Dante, a forte ligação à sua cidade natal, Florença, e a escrita da obra que o imortalizou, A Divina Comédia; a pintura mostra, de facto, a concepção medieval do cosmos, baseada na omnipresença da religião, que estrutura todo o seu poema.
Dante Alighieri (1265-1321) pode ser apresentado, devido ao seu percurso de vida e às actividades a que se dedicou, como um homem que exemplifica o desenvolvimento das cidades na Europa medieval, e a sua cada vez maior importância económica, política e cultural. Nascido em Florença, uma cidade muito dinâmica em termos populacionais e comerciais, a partir de 1290 começa a dedicar-se à escrita, influenciado por poetas seus contemporâneos, caso de Brunetto Latini e Guido Cavalcanti. É possível que tenha também frequentado estudos universitários. O governo comunal da cidade era então exercido por representantes eleitos das corporações de operários, artesãos e outros profissionais. Assim, Dante acaba por ser nomeado, em 1300, como um dos dirigentes, mas devido ao modo como conduziu a governação, suscitanto a forte oposição de grupos rivais, foi condenado ao desterro. A partir daí viveu sempre fora de Florença, vindo a morrer em Ravena. A sua experiência política levou-o a escrever livros onde defende ideias bastante inovadoras, nomeadamente a de que ao Estado compete o poder político e à Igreja apenas o poder espiritual, enquanto intermediária entre Deus e os Homens. O facto de passar a escrever em vernáculo, em italiano, contribuiu também para diminuir o poder dos eclesiásticos; de facto, a língua da cultura era então sobretudo o latim, apenas dominado pelo clero, o que tornava o conhecimento pouco acessível ao povo comum; situação que começa a inverter-se a partir do momento em que que se escrevem mais livros nas línguas próprias de cada país, as que na verdade eram faladas. A sua obra maior, A Divina Comédia, escrita no exílio, é um longo poema dividido em três partes, no qual Dante descreve minuciosamente a sua viagem imaginária pelo Inferno, Purgatório e Paraíso, acompanhado por Virgílio, o famoso poeta da Antiguidade romana, e depois por Beatrice Portinari, a sua sempre amada. A estrutura do poema revela uma simetria matemática baseada no número 3: são três as partes, três os versos de cada estrofe (tercetos) e trinta e três os cantos, evocando o dogma cristão da Trindade, também presente no triplo portal característico da catedral gótica. Além de apresentar o modo como o Homem medieval concebia o universo, o poema revela sobretudo o percurso pessoal de Dante, que, encontrando-se em pecado, inicia um processo de ascensão e purificação gradual até chegar ao Paraíso, identificado com a luz absoluta, enquanto que o Inferno permanecia na obscuridade da terra. Ou seja, mostra que a salvação do Homem, o chegar a Deus, passava por um processo de iluminação gradual, ideia que remonta ao século XII e que esteve na origem da concepção arquitectónica das catedrais.
»»» Sobre Dante e a sua obra literária existe uma página web bastante completa, em português do Brasil, onde pode ser consultado o poema no original italiano e em tradução, além de muitas imagens alusivas ao mesmo, em A Divina Comédia. «««

12.10.05

4. A cidade como palco: as festas do casamento de Leonor de Portugal com Frederico III da Alemanha


__ Vista panorâmica da cidade de Lisboa no princípio do século XVI, segundo uma iluminura atribuída a Francisco de Holanda (Museu Condes Castro Guimarães, Cascais); no ponto mais alto, o morro do castelo, ficava situado o palácio real, e um pouco mais abaixo, na encosta, a sé catedral; é também visível a praça do rossio e o cais da ribeira.

__ Cena de um banquete de casamento, iluminura do livro Histoire d' Olivier de Castille et d' Artus d' Algarbe, Paris, BN.
Entre os dias 13 e 25 de Outubro de 1451 a cidade de Lisboa foi o palco e o cenário de um conjunto variado de festejos para comemorar o casamento da infanta Leonor de Portugal, irmã do então rei Afonso V, com o imperador da Alemanha, Frederico III. Aqui estiveram presentes embaixadores que representavam os reis de toda a Europa. Durante dias e noites realizam-se, em privado ou perante a população lisboeta, banquetes, danças, jogos, cortejos, touradas e matança de touros, cuja carne era distribuída pelo povo, exibição de animais e homens exóticos que haviam sido trazidos de África, torneios, justas, duelos e caçadas, representações teatrais, declamações de discursos de homenagem à princesa tornada imperatriz, cerimónias religiosas, festas populares e folguedos vários. Este conjunto de festas ocorreu em locais distintos da cidade: no castelo, onde então se localizava o Paço régio, em outros palácios, na sé catedral, nas praças, como a do Rossio, e nas próprias ruas. No itinerário das festas, o palácio e a catedral constituíam os "palcos" mais importantes, por representarem o poder político e o religioso, respectivamente, que se impunham sobre a cidade e os seus habitantes. Estas festas foram, assim, uma ocasião privilegiada para a encenação e exibição propagandística do poder do rei de Portugal, perante os embaixadores europeus e os seus súbditos. Mostram também o grau de desenvolvimento que as cidades alcançaram no século XV, que se havia iniciado no século XII, e a sua centralidade política, administrativa e cultural.
Nicolau Lanckman de Valckenstein, capelão imperial e embaixador alemão em Portugal, escreveu um relato muito pormenorizado dos vários festejos que antecederam a partida da princesa Leonor; apresenta-se aqui um pequeno excerto ilustrativo da sua obra:
"No dia 14 do mês de Outubro (...). Depois, prosseguindo, em quarto lugar, em frente da igreja metropolitana onde repousa o corpo de S. Vicente, estava o reverendíssimo senhor arcebispo, com os seus cónegos e outros muitos clérigos, paramentados, aclamando a senhora desposada, a imperatriz, Dona Leonor, que tinha chegado à sua frente, com os irmãos, as irmãs e os embaixadores, a cavalo com muito povo. A todos eles o dito senhor arcebispo deu-lhes a bênção. (...) Entretanto, uma criança, vestida de anjo, descia da torre alta da igreja, por um engenho de homens, trazendo uma coroa de ouro à senhora imperatriz, e cantando suspensa no ar (...). Havia sido armado aí um local à maneira de Paraíso e dele uma criança angelical, descia pelo ar das alturas, de certa janela da torre, trazendo rosas numa bacia dourada (...). (...) estava reunido muito povo, quase vinte mil pessoas de ambos os sexos, e foi pronunciado perante toda a multidão um discurso por um notável doutor, durante quase meia hora, em honra e louvor do sereníssimo senhor imperador, o esposo, e da sua dilecta esposa Dona Leonor (...)."
Aires Augusto Nascimento (trad.), Leonor de Portugal, Imperatriz da Alemanha, Lisboa, Edições Cosmos, 1986.

11.10.05

3. A cidade medieval: cultura e religiosidade


__ Uma lição de Geometria, numa iluminura de Gossouin de Metz, Image du monde, século XIV, Paris, BN.

__ Franciscano em pregação, iluminura do livro Heures à l' usage de Therouanne, 1280-1290, Marselha, BM.
Na época medieval a produção cultural está intimamente relacionada com a religião; o latim, a língua da sabedoria e das cerimónias religiosas, é dominada apenas pela elite dos clérigos; o próprio ensino, ministrado nas escolas monacais, episcopais e paroquiais, visava sobretudo a formação dos eclesiásticos. O acesso ao conhecimento restringia-se, assim, aos membros da Igreja. Contudo, a partir dos meados do século XII, em cidades como Bolonha, Paris ou Oxford, surgem associações de estudantes e professores que pretendem promover um ensino diferente, dando origem às primeiras Universidades (ou Estudos Gerais), assim designadas porque recebiam estudantes de qulaquer grupo social e de todas as nações. Especializadas em áreas específicas, como a Medicina, Direito ou Teologia, procuravam responder também às necessidades de formação de nobres e burgueses, dado haver a consciência de que o ensino até então ministrado era insuficiente para responder aos problemas que os rodeavam. Precisamente para fazer face a alguns desses problemas urbanos, nomeadamente a pobreza, a mendicidade e a exclusão social, são fundadas no começo do século XIII as ordens religiosas mendicantes, Franciscanos e Dominicanos; reagindo ao luxo em que vivia a Igreja, seguem a regra da pobreza absoluta e da ajuda aos pobres, razão pela qual os seus conventos se situavam em meio urbano, geralmente fora das muralhas, junto aos arrabaldes, onde se dedicavam à pregação e à assistência. Estas novas ordens religiosas nascem, portanto, dos grandes contrastes sociais resultantes do crescimento económico e urbano da Europa ocidental.
Nesta carta de Frederico II, imperador entre 1220 e 1250, é bem visível o maior interesse dos leigos pelo conhecimento, que deixa de estar restrito apenas aos membros da Igreja:
"Meu Mestre bem amado, nós temos frequentemente e de muitas maneiras ouvido falar de questões e de soluções encontradas por um ou vários sábios, acerca dos corpos do alto, tal como o sol, a lua e as estrelas fixas do céu, bem como dos elementos, a alma do mundo, os povos pagãos e cristãos e todo o resto das criaturas que se encontram comumente espalhadas em cima ou debaixo da terra, como as plantas e os metais. Mas nada nos foi ainda explicado acerca dos segredos que trazem o prazer do espírito ao mesmo tempo que concedem a sabedoria: por exemplo, o que se refere ao paraíso, ao purgatório ou ao inferno, ou até mesmo os fundamentos da terra e sobre as maravilhas que ela encerra. É por estas razões que hoje vimos suplicar-te, por amor da ciência e pela veneração que deves à nossa coroa, que nos expliques qual é o fundamento da terra ou como ela está constituída (...)."
Armando Alberto Martins, História da cultura medieval. Textos e documentos, Lisboa, Faculdade de Letras, 2001/2002, p. 48.

2. A cidade medieval: organização física, social e económica do espaço urbano


__ Pormenor da cidade de Lucca, Itália; nesta fotografia aérea é visível o modo como o urbanismo medieval aproveitou estruturas romanas pré-existentes, neste caso no perímetro de um antigo circo foram construídas habitações, dando origem a uma praça.
__ A paisagem urbana de San Gimignano, Itália, povoada por torres que simbolizam o poder da cidade e dos seus habitantes.

__ Cena de um mercado urbano, iluminura do livro Le chevalier errant, 1400-1405, Paris, BN.
O crescimento demográfico, associado a uma maior dinâmica comercial (visível na fundação de mercados e feiras, por exemplo), conduzem à afluência e concentração populacionais junto das muralhas das antigas cidades, sobretudo nas mais estrategicamente colocadas; surgem assim os burgos de fora (faubourg) ou arrabaldes, bairros novos onde se concentra muita população vinda dos campos, e que mais tarde serão também rodeados de muros defensivos. A muralha é o elemento que identifica a cidade e define o seu perímetro, havendo receitas de impostos destinadas à sua construção e reparação. Intramuros, a urbe organiza-se em torno da praça onde se localizava a igreja mais importante (a sé catedral, apenas em cidades com bispo, e a igreja matriz), mercados e outros edifícios de prestígio, caso dos palácios comunais e dos paços do concelho; as ruas mais importantes partiam deste centro e dirigiam-se radialmente para as portas do recinto fortificado. No urbanismo medieval encontram-se várias tipologias de plantas: a radioconcêntrica, a irregular e a regular, no caso das cidades recém fundadas. No século XIII dizia-se que "o ar da cidade liberta", ou seja, em geral as populações urbanas não estavam sujeitas ao poder arbitrário dos grandes senhores; num período de maior centralização do poder dos reis, estes concedem mais liberdades, privilégios e capacidade de auto-governação aos burgueses, dando-lhes condições para prosperarem nos seus negócios. Surgem assim instituições novas ligadas à cidade: as comunas e os concelhos, com funções políticas e administrativas; as confrarias, associações de carácter religioso que tinham objectivos assistenciais; e as corporações de ofícios, de carácter profissional, que agrupavam os elementos de uma mesma profissão, em geral distribuídos por ruas específicas.
Dois textos dos finais do século XII, de Richard Devize e Guillaume Fitz Stephen, sobre a cidade de Londres, demonstram bem as diferentes e apaixonadas reacções dos homens da época a este fenómeno novo, o crescimento urbano; o primeiro refere-se aos problemas criados pela diversidade social própria das cidades, enquanto que o segundo prefere destacar a sua vitalidade económica:
"Esta cidade não me agrada. Há pessoas de todos os géneros, vindas de todos os países possíveis; cada raça traz consigo os seus vícios e os seus costumes. Ninguém pode viver aqui sem se manchar com um qualquer delito. Os bairros estão repletos de obscenidades revoltantes. (...) Não se misturem com a gentalha das hospedarias (...). Aí, os parasitas são infinitos. Actores, bobos, jovens efeminados, mouros, aduladores, efebos, pederastas, bailarinas especializadas na dança do ventre, feiticeiros, charlatães, raparigas que cantam e dançam, extorsionários, noctívagos, magos, mimos, mendigos: eis o género de pessoas que enchem as casas. Por isso, se não quiserem conviver com malfeitores, não venham viver para Londres."
"(...) de todas as nobres cidades do mundo, Londres, trono do reino de Inglaterra, espalhou por todo o universo a sua glória, a sua riqueza e as suas mercadorias e vive de cabeça erguida. É uma cidade abençoada pelos céus; o seu clima saudável, a sua religião, a vastidão das suas fortificações, a sua posição favorável, a fama de que gozam os seus cidadãos e o decoro dos seus senhores, tudo joga em seu favor (...). Os habitantes de Londres são universalmente apreciados pela finura dos seus modos e dos seus costumes e pelas delícias da sua mesa."
Jacques Rossiaud, "O citadino e a vida na cidade", O Homem Medieval, dir. Jacques Le Goff, Lisboa, Editorial Presença, 1989, p. 99.

1. A Europa das cidades: do renascimento do século XII a meados de Quatrocentos


__ Mapa das principais cidades europeias da Idade Média; repare-se na grande concentração urbana em Itália, o centro do antigo Império Romano, e na região a norte de Paris.

__ Pintura a fresco de Ambrogio Lorenzetti, executada entre 1337 e 1340, no Palácio comunal de Siena, Itália. É um exemplo da intensa actividade de uma cidade medieval.
A fragmentação politica da unidade imperial romana, a partir da segunda metade do século V, origina uma Europa dividida em vários reinos, dominados por chefes guerreiros de origem goda. Iniciava-se assim um período de profunda ruralização da vida económica, social e mesmo religiosa, pois os mosteiros estavam sobretudo localizados em meio rural e em locais naturalmente inóspitos. As cidades perdem a sua antiga importância e muitas das suas estruturas vão-se degradando. Este cenário inverte-se a partir da segunda metade do século XI, e consolida-se uma tendência contínua de crescimento ao longo do XII e XIII: a progressiva melhoria das condições climatéricas (aumento da temperatura), as campanhas de arroteamentos e as inovações técnicas proporcionam o aumento da produtividade agrícola e a consequente melhoria das condições de vida das populações; tanto o aumento demográfico como a existência de excedentes agrícolas levam à revitalização dos centros de comércio local e regional, e naturalmente das próprias cidades, criando-se assim as condições para o desenvolvimento de indústrias variadas, embora ainda de forma artesanal. A grande crise económica e demográfica iniciada nos começos do século XIV, que a deflagração da Peste Nega em 1348 veio agravar, não alterou, contudo, o crescimento em número e importância das cidades na dinâmica da Europa ocidental. E nesta época destacam-se, de facto, duas grandes áreas no contexto europeu, pela sua dinâmica económica e urbana: as cidades da Itália, no sul, e as da Flandres, a norte.
Jean Lelong, monge cronista do século XIV, explica como da afluência de uma população móvel junto das muralhas de um antigo burgo, se densenvolveu uma nova cidade, Bruges (situada na actual Bélgica):
"(...) para satisfazer as faltas e necessidades dos da fortaleza, começaram a afluir diante da porta, junto da saída do castelo, negociantes, ou seja, mercadores de artigos custosos, em seguida taberneiros, depois hospedeiros para a alimentação e albergue dos que mantinham negócios com o senhor, muitas vezes presente, e dos que construíam casas e preparavam albergarias para as pessoas que não eram admitidas no interior da praça. O seu dito era: «vamos à ponte». Os habitantes de tal maneira se agarraram ao local que em breve aí nasceu uma cidade importante que ainda hoje conserva o seu nome vulgar de ponte, porque brugghe significa ponte em linguagem vulgar."
Fernanda Espinosa, Antologia de textos históricos medievais, Lisboa, Livraria Sá da Costa Editora, 1972, p. 199.

A CULTURA DA CATEDRAL


__ Origem e difusão da arte das catedrais, mais tarde defenida como estilo gótico, pela Europa ocidental, mapa retirado de Ana Lídia Pinto, Cadernos de História da Arte 5, Porto, Porto Editora, 2000, p. 9.

__ Vista de Évora numa iluminura de 1501 (Arquivo Municipal de Évora), sendo bem visível o domínio da catedral sobre toda a cidade, em termos de estrutura física mas também religiosa, cultural e mesmo económica.
"Enquanto símbolo do reino de Deus na terra, a catedral fixava do alto a cidade e a sua população, transcendendo todos os outros problemas da vida tal como transcendia toda a sua dimensão física."
Otto von Simon, A catedral gótica. Origens da arquitectura gótica e o conceito medieval de ordem, Lisboa, Editorial Presença, 1991, p. 20.
"Por defenição, a catedral é a igreja do bispo, portanto, a igreja da cidade, e o que a arte das catedrais significou primeiramente na Europa foi o renascimento das cidades. Estas, nos séculos XII e XIII, não param de crescer, de se animar, de estender os subúrbios ao longo das estradas. Captam a riqueza. Após um longuíssimo apagamento, tornam a ser, ao norte dos Alpes, os focos principais da mais alta cultura. Mas a vitalidade que as penetra vem, quase toda, dos campos circundantes. (...) em parte alguma o impulso de prosperidade rural foi mais vivo nesta época do que no Noroeste da Gália. (...) Por isso a nova arte foi reconhecida por todos os contemporâneos como sendo propriamente a arte de França."
Georges Duby, O tempo das catedrais. A arte e a sociedade, 980-1420, Lisboa, Editorial Estampa, 1978, p. 99.
»»» Sobre a arte das catedrais, consultar a página web da Biblioteca Nacional de Paris, que, embora em língua francesa, tem um conjunto excelente de imagens, nomeadamente os desenhos de um dos mais conhecidos arquitectos franceses do século XIII, Villard de Honnecourt (ir a "feuilletoirs" e percorrer as imagens). «««