22.11.05

11. Presença constante da morte no século XIV: reflexos na cultura e na arte


__ O Triunfo da Morte, pintura de Pieter Bruegel, o Velho, 1562, Madrid, Museo del Prado; embora realizada num período bem posterior ao aqui estudado, esta obra mostra bem o carácter generalizado da morte, que afecta toda a sociedade sem distinções hierárquicas.
__ Cena de enterros colectivos no século XIV, na sequência da deflegração da Peste Negra, segundo iluminura da época.
__ Danças macabras, gravura do Liber Chronicon, de Hartmann Schedel, século XV.

__ A morte armada de gadanha, ceifando as vidas de toda a população; cena de dança macabra em pintura a fresco do Palácio dos Papas, em Avignon, século XIV.
__ Estátuas jacentes nos túmulos de Ricardo Coração de Leão e sua esposa, Isabel de Angoulême, na igreja abacial de Fontevraud, 1200-1260.
__ Arca tumular, e respectiva estátua jacente, do rei Pedro I de Portugal, no Mosteiro de Alcobaça, 1361-1367.
O século XIV europeu foi dominado pela chamada "trilogia negra", ou seja, a actuação conjunta de três factores, fomes, pestes e guerras, que inverteram a tendência de crescimento vinda dos tempos anteriores e provocaram uma taxa de mortalidade elevadissima e a estagnação na economia. De facto, o forte crescimento demográfico dos séculos XII e XIII sofre um retrocesso devido aos maus anos agrícolas no início do XIV, generalizando a fome e a mortalidade; os organismos debilitados pela má nutrição e as condições de higiene da época facilitam a propagação de doenças e a ocorrência de mais mortes. A peste que atingiu a Europa entre 1347 e 1350, embora com diferenças regionais, provocou a morte a mais de 1/3 dos seus habitantes e instalou um clima de desespero colectivo. Quanto às guerras, o panorama europeu é dominado pela "Guerra dos 100 Anos" (1337-1453), entre a França e a Inglaterra, envolvendo depois outros países conforme as alianças em jogo. A grande quebra demográfica resultante destes acontecimentos provoca falta de mão-de-obra, abandono dos campos, baixa produtividade agrícola e subida dos preços; este clima de crise generalizada propicia a ocorrência de revoltas populares, rurais e urbanas, um pouco por toda a Europa. Ao nível das mentalidades e dos comportamentos colectivos, esta crise, e em particular a Peste Negra (que se pensava ser um castigo de Deus devido aos pecados dos Homens), instalaram um ambiente de incerteza, insegurança e angústia face à inevitabilidade da morte, reflectindo-se na vida espiritual através do reforço da religiosidade e devoção populares, caso das práticas colectivas de penitência, as chamadas procissões dos flagelantes; face à constatação da brevidade da vida, a crise suscitou também a exaltação dos bens materiais, estimulando o gosto pelo luxo e festividades. Também a cultura reflecte esta obsessão pela morte, nomeadamente, na literatura, a proliferação dos chamados Ars Moriendi [Arte de Morrer], ou seja, tratados que ensinavam a bem morrer; na música é muito divulgado o hino Dies Irae [A Ira de Deus], composto na 2.ª metade do século XIII, associado às missas dos defuntos; nas artes, a chamada arte macabra, na qual a morte de Cristo e a descida ao túmulo são temas constantes, além das xilogravuras que representam a morte armada de gadanha, o cadáver comido pelos vermes e as danças macabras, e na pintura a fresco o triunfo da morte sobre todos, independentemente do estatuto social de cada um. Também neste contexto se divulga o gosto pelos crucifixos e pietàs, além de transformações na escultura de monumentos funerários, a tumulária. Nos séculos XII e XIII vulgariza-se a construção de túmulos entre as grandes famílias régias, nobiliárquicas e clericais, nos quais o morto era identificado na arca tumular com os respectivos brasões e inscrições epigráficas; a partir do século XIII tornam-se comuns as estátuas jacentes, representando o morto reclinado sobre a arca tumular, cujo rosto é idealizado, com um leve sorriso de perfeição e serenidade testemunhando a esperança na vida eterna; no século XIV é visível a grande preocupação em esculpir com realismo as feições do morto enquanto vivo, para ser identificado como tal e perpetuada a sua memória, originando a procura da verosimilhança no retrato; a partir dos meados deste século, esta tendência e a reflexão sobre a morte, aliada ao progresso nos estudos anatómicos, conduz à representação do corpo mirrado do morto, envolto num lençol ou nu, como cadáver em decomposição, revelando a consciência da precaridade do corpo e da perenidade do espírito, além do gosto pelo mórbido.
Estes texto, escrito por um monge do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, reflecte o ambiente de crise que se vivia por toda a Europa no século XIV, sobretudo devido à fome e à deflagração de um forte surto de peste que dizimaram grande parte da população europeia, invertendo a tendência demográfica que vinha do século anterior.
"O ano de 1333 foi tão mau por todo o Portugal, que andou o alqueire de trigo a vinte e um soldos (...). E foi minguado o ano em todos os outros frutos de que as gentes se mantinham, e este ano morreram muitas gentes de fome, tantas como nunca os homens viram morrer por esta razão (...) e tantos foram os mortos sepultados que não cabiam nos adros das igrejas e os enterravam fora dos adros e deitavam-nos em covas quatro a quatro e seis a seis, assim que os encontravam mortos pelas ruas. (...) No ano de 1348 foi grande a mortandade pelo mundo, tendo morrido as duas partes das gentes. Esta mortandade durava na terra pelo espaço de três meses. E as maiores dores das doenças eram devido aos bubões que tinham nas virilhas e sob os braços."
Livro das Eras de Santa Cruz de Coimbra, ed. António Cruz, Anais, crónicas e memórias avulsas de Santa Cruz de Coimbra, Porto, Biblioteca Pública Municipal, 1968, pp. 69-88, adaptado.
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A morte na literatura e na arte dos séculos XIV e XV
"Em nenhuma outra época como na do declínio da Idade Média se atribuiu tanto valor ao pensamento da morte. (...) A queixa sem fim da fragilidade de toda a glória terrena era cantada em várias melodias. Três motivos podem distinguir-se. O primeiro é expresso pela pergunta: onde estão agora aqueles que em dado momento encheram o mundo com o seu esplendor? O segundo motivo reside no horrível espectáculo da beleza humana caída na decrepitude. O terceiro é a dança da morte: a Parca arrastando os homens de todas as condições e idades. (...) A meditação ascética tinha, em todas as idades, insistido no pó e nos vermes. Os tratados do desprezo do mundo tinham, desde há muito, evocado os horrores da decomposição, mas foi somente nos fins do século XIV que a arte pictural, por seu turno, tomou conta do motivo. Para transmitir os horríveis pormenores da decomposição necessitava-se de uma força de expressão realista que só por volta de 1400 a escultura e a pintura atingiram. (...) Até bastante tarde no século XVI os túmulos são adornados com as imagens horríveis de um cadáver nu com mãos enclavinhadas e os pés hirtos, a boca aberta e as entranhas cheias de vermes. (...) Nos fins da Idade Média a visão total da morte pode ser resumida na palavra macabro, no significado que actualmente lhe damos. Este significado é sem dúvida o resultado de um longo processo. Mas o sentimento que ele encarna, algo horrível e funesto, é precisamente a concepção da morte que surgiu durante os últimos séculos da Idade Média. (...) Cerca do ano de 1400 a concepção da morte na arte e na literatura revestiu-se de uma forma espectral e fantástica. Um novo e vivo arrepio veio juntar-se ao primitivo horror da morte. A visão macabra surgiu das profundidades da estratificação psicológica do medo; o pensamento religioso imediatamente a reduziu a um meio de exortação moral. (...) A ideia da dança macabra é o ponto central de todo um grupo de concepções associadas. A prioridade pertence ao motivo de três mortos e três vivos que se encontra na literatura francesa do século XIII em diante. Três jovens nobres encontram subitamente três mortos que os horrorizam, lhes falam das passadas grandezas e os avisam de que o seu fim está próximo. A arte não tardou a tomar conta deste sugestivo tema. (...) Pintado em miniaturas e em gravuras de madeira, espalhou-se largamente. (...) O tema dos três mortos e três vivos liga o horrendo motivo da putrefacção com o da dança macabra. (...) Enquanto lembra aos espectadores a fragilidade e a vaidade das coisas terrenas, a dança da Morte ao mesmo tempo prega a igualdade social tal como era compreendida na Idade Média, a morte nivelando as várias categorias sociais e profissões. (...) O pensamento dominante, tal como se exprime na literatura, tanto eclesiástica como leiga, desse período, quase mais nada conheceu relativamente à morte do que estes dois extremos: a lamentação acerca da brevidade das glórias terrenas e o júbilo pela salvação da alma. Tudo o que entre esses extremos se encontra (...) ficou sem ser expresso e foi, por assim dizer, absorvido pela muitíssimo acentuada e demasiadamente vívida representação da morte horrenda e ameaçadora. Mas a emoção viva congela-se entre a abusiva representação dos esqueletos e dos vermes."
Johan Huizinga, O declínio da Idade Média, 2.ª ed., Lisboa, Editora Ulisseia, 1985, pp. 145-157.