15.11.05

10. Escultura gótica: a humanização do Céu


__ Estátuas-coluna das jambas representando personagens do Antigo Testamento, portal ocidental, Catedral de Chartres, cerca de 1155.

__ Catedral de Chartres, visão de conjunto da imagem anterior.

__ Catedral de Notre Dame de Paris, portal sul.

__ Catedral de Notre Dame de Paris, tímpano do portal central.

__ A ressurreição dos mortos, pormenor do tímpano do portal central de Notre Dame.

__ Catedral de Estrasburgo, estátuas de profetas bíblicos.
__ Abraão e Melquisedeque (personagens bíblicas), interior da fachada ocidental, Catedral de Reims, 2.ª metade do século XIII.
__ Pormenor do Anjo da Anunciação, portal da fachada ocidental, Catedral de Reims, cerca de 1225-1245.
__ A Virgem com o Menino, estátua de 1339, que pertenceu à Abadia de Saint Denis; Museu do Louvre, Paris.

A escultura gótica surge, numa primeira fase, intimamente associada à arquitectura das catedrais. No exterior do edifício são sobretudo as fachadas, principal e do transepto, nomeadamente os portais, os suportes para a implantação da escultura; à medida que se vão tornando mais complexas, também as empenas, rosáceas, tabernáculos dos arcobotantes e gárgulas das catedrais vão servir de suporte para a decoração escultórica. Quanto à estrutura do portal, ele é constituído pelo tímpano, arquivoltas, mainel e ombreiras ou jambas, substituídas por estátuas-coluna. No interior o trabalho escultórico é bem mais reduzido, e é sobretudo a partir do século XIV que a catedral passa a albergar mobiliário com relevo em talha (cadeirais do coro), estatuária devocional, altares e arcas tumulares. No seu conjunto, a escultura gótica pode ser agrupada em quatro tipologias: 1. estátuas-coluna, aplicada nas ombreiras do portal conferindo uma dimensão vertical ao pórtico, mas que progressivamente se vai autonomizando em relação ao seu suporte arquitectónico; 2. relevo escultórico, sobretudo no tímpano do portal; 3. escultura de vulto redondo, em especial estatuária de devoção, resultante da evolução das estátuas-coluna; 4. escultura funerária, ou seja, arcas tumulares e estátuas jacentes (que serão analisadas no post 11). Os temas mais comuns, sobretudo na fachada/portal, são os seguintes: - Cristo em Majestade, associado ao Tetramorfo; - Juízo Final; - Virgem em Majestade, Vida da Virgem e Nascimento de Cristo, um tema introduzido por influência da difusão do culto mariano desde os finais do século XII; - Episódios da vida dos santos patronos da respectiva igreja; associados a estes temas começa a ser mais comum a existência de relevos escultóricos e estatuária de carácter profano. Se a estátua-coluna e o relevo têm uma relação de dependência com o respectivo suporte arquitectónico, a partir do século XIV torna-se muito abundante a escultura de vulto redondo, estatuária de devoção associada às práticas da piedade individual e destinada a capelas ou oratórios privados; é sobretudo constituída por imagens da Virgem (Virgem com o Menino, Senhora do Ó ou Santas Mães, Pietà), de santos e crucifixos, e executada em materiais diversos, como a pedra, madeira, marfim, bronze, ouro e alabastro. Em termos de linguagem plástica, e no conjunto de toda a produção escultórica, podem ser defenidas três tendências principais: a) Idealismo (séculos XII-XIII), com figuras estilizadas e ausência de expressividade dos respectivos rostos (serenidade inexpressiva); hieratismo das estátuas-coluna: ausência de movimento, panejamentos rígidos acentuam a verticalidade, ausência de proporção anatómica; b) Naturalismo (2.ª metade do século XIII a meados do XIV), em que a estatuária ganha vida e movimento, com ancas pronunciadas e silhuetas em S para evidenciar dinamismo, acentua-se a expressão do rosto e surgem detalhes mais minuciosos no tratamento de cabelos e barbas, conferindo um carácter mais humano às personagens divinas representadas; c) Realismo (2.ª metade do século XIV e durante o século XV), época do triunfo da curva e contra-curva, ondulação excessiva, sobretudo no drapeamento, que acentua a expressividade das estátuas; preocupação absoluta de representação do real, que conduz à procura da verosimilhança no retrato; por influência da grande mortandade após 1348 e os progressos nos estudos anatómicos levam mesmo ao exagero de representar o corpo feito cadáver.
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Sobre a escultura gótica
"Apesar de terem mantido muitos aspectos que caracterizaram a escultura românica, como, por exemplo, a continuidade de uma relação de grande cumplicidade com a arquitectura, os artistas dos sécs. XIII e XIV alargaram o seu repertório temático, utilizaram um maior número de suportes e receberam da parte dos encomendadores uma atitude mais aberta em relação ao seu trabalho. Relativamente ao período anterior, registou-se uma evolução, sobretudo, ao nível da composição, da expressividade, da monumentalidade das suas obras e da progressiva aproximação ao real. Deste modo, a escultura gótica estabeleceu uma aproximação gradual à cultura humanística (....), assumindo um carácter mais naturalista na representação do rosto, do corpo humano ou da natureza, desenvolvendo novas capacidades expressivas e autonomizando-se em relação à arquitectura. Tendo conquistado o seu próprio espaço, a escultura atingiu uma concepção mais plástica, mais dinâmica e «verdadeira». Uma das obras paradigmáticas desta renovação é a Morte da Virgem, do tímpano da Catedral de Estrasburgo. Aqui, a dificuldade de adaptação das figuras ao espaço arquitectónico, implicando nalguns casos a representação parcial das figuras, é compensada pela delicadeza com que os Apóstolos tocam o corpo da Virgem e pela emoção que se manifesta nos seus rostos. Também a forma como são tratados os cabelos e as pregas das roupas, evidenciando a anatomia dos corpos, é inovadora e faz-nos lembrar a arte clássica. Já a Anunciação e a Visitação esculpidas nas jambas do pórtico ocidental da Catedral de Reims (...) libertaram-se da arquitectura para se converterem em esculturas de vulto redondo, firmemente apoiadas no solo, continuando um caminho iniciado em Chartres. Privilegiando uma aproximação ao mundo físico, as pregas da roupa deixam transparecer as anatomias que cobrem e, especialmente na Visitação, o escultor parece dominar completamente o modelo clássico. Talvez a inovação mais significativa se relacione com a organização do portal do templo: as ombreiras, ou jambas, são substituídas por estátuas-coluna que se prolongam nas arquivoltas em torno do tímpano. A evolução dos temas e da iconografia, inspirada no Novo Testamento, continua sendo estabelecida por motivações de ordem religiosa - o Cristo em Majestade, o Juízo Final (com os Apóstolos distribuídos pelas ombreiras) e a Virgem em Majestade -, mas, de um modo geral, as figuras são humanizadas estabelecendo entre elas uma relação afectiva. A partir de meados do séc. XII, o santo patrono da igreja ocupa o tímpano numa mandorla e no centro de cenas da sua vida, ao qual se juntam todos os santos da diocese nas ombreiras, em estátuas-coluna. A escultura gótica caracterizou-se, sobretudo, pelo naturalismo das expressões e dos detalhes mais minuciosos e por uma representação mais próxima do real. Para além destas manifestações, surgem com grande impacto na produção escultórica as estátuas jacentes e os retratos funerários, o que se deveu fundamentalmente à proliferação de capelas privadas para albergar sepulcros de nobres, altos dignitários eclesiásticos e burgueses."
Paulo Simões Nunes, História da cultura e das artes, Lisboa, Lisboa Editora, 2005, p. 226.