23.10.05

6. Saint Denis, o abade Suger e as origens da arte das catedrais: Deus é luz


__ Mosteiro de Saint Denis: pormenor do duplo deambulatório que rodeia o coro e o altar-mor da igreja, com o sistema de cobertura em abóbada de cruzaria de ogivas e os respectivos pilares de sustentação, sendo também visíveis as paredes rasgadas de janelas.
__ Mosteiro de Saint Denis: pormenor do altar-mor da igreja, rodeado pelo deambulatório e respectivas capelas radiantes.
__ Mosteiro de Saint Denis: vista geral da nave principal, com a respectiva cobertura em abóbada de cruzaria de ogivas, e separada das outras naves por uma sucessão de arcos quebrados; ao fundo a cabeceira e suas capelas radiantes, foco de onde irradia a luz sobre todo o espaço.
__ Mosteiro de Saint Denis: pormenor da cobertura da nave principal da igreja, em abóbada de cruzaria de ogivas, cujo peso é descarregado para os pilares laterais, e destes para os contrafortes e arcosbotantes do exterior; os alçados laterais são quase integralmente constituídos por paredes de vidro, decoradas com vitrais.
__ Mosteiro de Saint Denis: a grande rosácea da fachada principal vista do interior da igreja.
Em 1144 realiza-se a cerimónia religiosa de consagração da nova igreja da Abadia de Saint Denis, perto de Paris, com a presença do rei Luís VII, de muitos nobres e de todos os bispos. Tratava-se do mosteiro mais importante por ser a necrópole régia, lugar de sepultura dos monarcas franceses, além de guardar também o corpo e as relíquias de Saint Denis, o apóstolo evangelizador da França e o santo protector do reino. Foi por isso que o seu abade, Suger (1081-1151), promoveu a remodelação arquitectónica da igreja, para que a qualidade do seu edifício correspondesse ao prestígio de um mosteiro que era, ainda, o principal centro de peregrinação de toda a França. Em comparação com o modelo românico, a estrutura que resultou das obras efectuadas entre 1137 e 1144, é bastante diferente. A fachada passa a ser flanqueada por duas torres e provida de três amplos portais; por detrás, o nártex possui dois tramos e três naves no nível térreo, e três capelas por cima destas, sendo ambos os pisos cobertos por abóbadas de cruzaria de ogivas. O cruzeiro, na intercepção da nave principal com o transepto, muito mais amplo e o centro luminoso da igreja, recebeu os relicários ornados de ouro e pedras preciosas, para estarem visíveis aos olhos de todos. A cabeceira passa a ter duplo deambulatório, de onde saíam as capelas radiantes, separados apenas por finos pilares que deixavam passar a luz, fundindo-se assim num só; a cobertura era constituída por uma abóbada de cruzaria de ogivas; todo o peso da construção é agora projectado para o exterior e aí suportado por contrafortes, usando-se mais tarde os arcosbotantes, de modo que o interior não necessitava de tantos suportes e adquiriu maior amplitude espacial e verticalidade; por fim, libertas as paredes da sua função de suporte, as janelas foram ampliadas ao ponto de ocuparem quase toda a superfície parietal. As inovações técnicas geralmente associadas à arquitectura gótica (arco quebrado ou ogival, abóbada de cruzaria de ogivas, arcobotante) não são, na verdade, elementos totalmente novos, pois haviam já sido usados pontualmente nas construções românicas; novo é o facto de surgirem pela primeira vez combinados num mesmo edifício, para concretizarem um determinado objectivo teológico e estético. O que há aqui de absolutamente novo, e que as futuras catedrais vão reproduzir, é: 1) o uso da luz, ou seja, a necessidade de ampliar o interior da igreja e libertá-lo de obstáculos à passagem da luminosidade, remetendo sobretudo para o exterior as estruturas de suporte de toda a construção; o objectivo era inundar a igreja com luz, identificada com o espírito de Deus e a luz criadora do universo. 2) a nova relação entre função e forma, estrutura e aparência, ou seja, a importância dada à perfeita relação entre as diferentes partes da igreja, em termos de proporções: a harmonia, baseada na geometria, como fonte de toda a beleza; se a nova arquitectura resulta dos progressos técnicos e da engenharia, que tornaram possível a construção de abóbadas mais altas e mais eficientes os respectivos suportes, permitindo suprimir as grossas paredes do românico, tais progressos estiveram subordinados a considerações de forma (beleza, harmonia, equilibrio), em que todo o esqueleto arquitectónico tem uma dimensão estética; por essa razão há vários elementos que exprimem uma função que não cumprem, caso das colunas embebidas que parece transmitirem o peso das abóbadas ao pavimento da igreja, mas na realidade são apenas decorativas. Estes dois aspectos mais marcantes da arquitectura gótica resultaram da interpretação que Suger fez da obra teológica de Dinis o Aeropagita, o qual identificava Deus com a luz. A catedral (de cathedra, o trono onde se sentava o bispo), construída com base nesta ideia, é então concebida como a materialização do imaterial (a luz ou espírito divino), a concretização da realidade sobrenatural, o lugar de passagem para a eternidade, a casa de Deus. Por volta de 1150 a nova arte, então designada por opus modernum (obra moderna) e opus francigenum (obra francesa), é ainda limitada a Paris e sua região, mas um século depois estende-se já por toda a Europa, começando a declinar a partir de 1450. No século XVI, Giorgio Vasari (1511-1574), arquitecto e tratadista do Renascimento, fascinado pelos cânones da Antiguidade Clássica, popularizou o termo gótico para designar, em sentido negativo, a arquitectura das catedrais, relacionando-a, pejorativamente, com os Godos.
Os textos escritos pelo abade Suger, sobre as obras de remodelação que mandou efectuar na igreja da Abadia de Saint Denis, demonstram bem a importância da teologia da luz como conceito base para as suas propostas arquitectónicas; nestes dois excertos destaca-se a associação entre Deus e Luz, e a igreja como o espaço de materialização dessa luz, ou seja, da divindade:
"Uma vez unida a nova parte posterior à parte da frente, toda a igreja resplandecerá com a sua parte intermédia, a nave, iluminada. Pois luminoso é aquilo que luminosamente se liga ao luminoso. E luminoso é o nobre edifício que a nova luz penetra."
"Quem quer que sejas, se queres prestar homenagem a estas portas não admires o ouro, nem a despesa, mas o trabalho e a arte. A nobre obra brilha, mas brilha com nobreza: que ela ilumine os espíritos e os conduza para verdadeiras luzes, para a verdadeira luz de que Cristo é a verdadeira porta."
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Um novo modelo construtivo
"A característica decisiva do novo estilo não é a abóbada de cruzaria de ogivas, o arco quebrado ou o arcobotante. (...) Nem a crescente altitude é o aspecto mais característico da arquitectura gótica. (...) Há, no entanto, dois aspectos da arquitectura gótica que não têm precedente nem paralelo: o uso da luz e a relação única entre estrutura e aparência. Pelo uso da luz entendo mais especificamente a relação da luz com a substância material das paredes. Numa igreja românica a luz é algo distinto e contrastante com a pesada, sombria, táctil substância das paredes. A parede gótica parece ser poderosa: a luz é filtrada através dela, penetrando-a, fundindo-se com ela, transfigurando-a. (...) Os vitrais do gótico substituíram as paredes vivamente coloridas da arquitectura românica; estruturalmente e esteticamente, eles não são aberturas na parede para admitir luz, mas paredes transparentes. (...) Neste aspecto decisivo, o gótico pode ser, por conseguinte, descrito como uma arquitectura diáfana, transparente. (...) A nenhum sector do espaço interior era permitido permanecer na escuridão (...). As naves laterais, os trifórios, o deambulatório e as capelas do coro, tornaram-se mais estreitos e menos profundos, as suas paredes exteriores, perfuradas por fileiras contínuas de janelas. Finalmente, surgem como uma concha superficial e transparente rodeando a nave e capela-mor, enquanto as janelas, se vistas do exterior, deixam de ser distintas. Parecem fundir-se, vertical e horizontalmente, numa esfera contínua de luz, uma barreira luminosa por detrás de todas as formas tácteis do sistema arquitectónico. (...) A segunda característica surpreendente do estilo gótico é a nova relação entre função e forma, estrutura e aparência. (...) a ornamentação está inteiramente subordinada ao motivo produzido pelos elementos estruturais, as abóbadas de cruzaria de ogivas e fustes de suporte; o sistema estético é determinado por estes. (...) a estrutura adquire na arquitectura gótica uma dignidade estética que fora desconhecida em tempos mais remotos. A maravilhosa precisão com que, por exemplo, cada bloco individual era talhado e assente na abóbada gótica - não deixando juntas desajustadas que tivessem de ser dissimuladas - sugere não só perfeita técnica artesanal (...) mas também um novo gosto e apreço pelo sistema tectónico para o qual o românico, em geral, parece não ter tido olhos. A pintura mural gótica nunca oculta, antes salienta, o esqueleto arquitectónico. Até mesmo os vitrais se submetem em crescendo, na composição e no desenho, ao padrão da armadura de pedra e metal em que se acham encaixilhados."
Otto von Simon, A catedral gótica. Origens da arquitectura gótica e o conceito medieval de ordem, Lisboa, Editorial Presença, 1991, pp. 27-40.